20.3.06

1/5 ou Um tempo para caco respirar ou ainda Das coisas que não podemos fugir

Rodava a saia e eu me via menino: Era pião, era pipa em decadência ou mesmo água descendo pela pia. A moça, cabelo para o alto, suava, era sola de pés queimando a terra batida podia ver o ar saindo de seu nariz.
Abre
Fecha
Mas homem, e agora crescido, via na dança algo mais do que uma manifestação assim tão inocente de uma tradição jogada num canto. Chamei a moça de Vera e concentrado, reparei que cada passo violento e ritmado era também uma metáfora besta para minha vida.
Voltei para a velha casa, as paredes entre o sebo e as rachaduras. Uma sombra abatida à tiros, como dizia meu pai. No primeiro dia abri as malas e cuspi pragas sobre a seda e a cambraia; vestindo uma velha lona fui inspecionar o pasto e o jardim e nem mesmo uma cerca separava uma coisa da outra, pois uma horda de capim santo e ervas de pouca utilidade se espelhavam por toda extensão que porventura fosse tocada pelo sol. Dos bichos, nem a carcaça.
Durante um mês velho Estevão aparecia na soleira da porta todos os dias. Oferecia ajuda, bolo de sua mulher, café forte. Durante um mês, neguei ao apelos e depois disso ele não mais apareceu. a verdade é que essa gente quer mesmo é saber o que se passa. Se vão comprar a sede da fazenda, se vão por mais cabeça gado se vai ter jeito de contratar meia dúzia de peões. Mas se não há isso, há a vida e a vida tem histórias que alimentam o povo, os calos nos cotovelos das moças debruçadas.
No dia que pude finalmente sentir a terra úmida e pura com as mãos, seu cheiro, o preparo para a fecundação e sua promessa de broto fui obrigado a conter uma lágrima. Pus café no bule, acendi a palha e sentado na rede fumei devagar o gosto bom do suor lavado. Caindo a noite, vi o cortejo passar em direção a cidade. Era tanta fita, criança, estandarte, um atordoamento. Uma Nossa Senhora de manto azul e o homem de tambor em punho convocavam para a celebração. Senti que estava em casa pela primeira vez e então, vestindo roupa de passeio, segui os fiéis me dissolvendo com gosto na multidão.

2 Comments:

Blogger Rayanne said...

Bonito.
Tem um quê de cravo.
Lembranças e andanças,
Outro lembra canela.

5:54 AM  
Anonymous Anônimo said...

Achei seu site muito legal. Vc escreve bem. Abraços
Luciano

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7:39 PM  

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