Lucinha e os anos
E por mais que eu quisesse encontrar um bom motivo para não ter entrado naquele banheiro, nada ocorria. Agora, tantos anos depois, o mesmo cigarro, a mesma pele só me falata mesmo ver os olhos bem de perto.
Lucinha usava óculos escuros enormes e fungava teatralmente na beira do caixão de Marcos. Nunca perdoamos esse patife por ter nos capturado a princesa e agora não iríamos perdoá-lo por abandoná-la assim de forma tão repentina, e na turma que conservava na memória uma Lucinha cheia de segredos e promessas transgressoras a via reduzida a uma viúva ordinária como tantas outras viúvas ordinárias naquele mesmo dia de enterros calorentos e apressados.
Realmente imperdoável manter esta mulher num lugar de sombras onde ela se parece com qualquer outra. Marcos sempre foi o mais calhorda, foi o primeiro a fumar, beber perder a virgindade e finalmente, supremo ápice adolescente, comer a Lucinha. Lembro até hoje do diálogo incrédulo:
- Comeu?
- Comi...
- Você não tá falando sério.
- Comi cara...
O babaca acendia um cigarro e e aumentava o suspense, nossos olhos arregalados:
- E como foi?
- Normal.
- Ela é boa?
- Gostosa, né?
- Então foi bom?
- Mais ou menos... A Marília é melhor.
E nos dava aquele tapa violento na cara, aquele tapa moral. Todos queriam Lucinha. Mas ele, ele não, desprezava a musa como quem mija num carro importado, só para sacanear o vizinho.
O que restava pra mim além de envolvê-la naquela aura de delírio ainda mais um pouco? Faria de mim mais jovem, mais honesto. Imaginei: Ela, num enterro, só com as canelas de fora chorando por um homem que não sou eu. Eu estivesse morto, fosse eu o cara a comer a Lucinha de oitenta e três no mínimo ela estaria usando luvas enquanto meu caixão descia desconjuntado pela cova adentro... Sempre achei que ela é do tipo de mulher que usaria luvas no enterro do amado. Ela não o amou. Certeza.
Acabada a cerimônia, andei devagar para a saída do cemitério sem a mínima vontade de cumprimentar quem quer que fosse. Encostei numa lápide musgosa e velha e lá pensei se não seria o Marcos o primeiro de uma dinastia de mortos que iriam me rodear e eventualmente me chamar. Seria mesmo bom estar mort...
- Tem isqueiro?
Ela balançava os óculos na mão esquerda e segurava o cigarro com a outra. Tirei o bic do bolso e acendi sem dificuldade comendo com os olhos a tragada mais funda que uma mulher poderia dar.
- Quer tomar um café?
Resolvi ser sem vergonha depois de velho, e no momento que ela olhou para o portão escancarado do cemitério um raio violento de vida passou pelos olhos daquela mulher. Ela murmurou um por que não acanhado e me deu o braço. E naquele momento, até que o mundo parecia mesmo feito para ser bom.
Lucinha usava óculos escuros enormes e fungava teatralmente na beira do caixão de Marcos. Nunca perdoamos esse patife por ter nos capturado a princesa e agora não iríamos perdoá-lo por abandoná-la assim de forma tão repentina, e na turma que conservava na memória uma Lucinha cheia de segredos e promessas transgressoras a via reduzida a uma viúva ordinária como tantas outras viúvas ordinárias naquele mesmo dia de enterros calorentos e apressados.
Realmente imperdoável manter esta mulher num lugar de sombras onde ela se parece com qualquer outra. Marcos sempre foi o mais calhorda, foi o primeiro a fumar, beber perder a virgindade e finalmente, supremo ápice adolescente, comer a Lucinha. Lembro até hoje do diálogo incrédulo:
- Comeu?
- Comi...
- Você não tá falando sério.
- Comi cara...
O babaca acendia um cigarro e e aumentava o suspense, nossos olhos arregalados:
- E como foi?
- Normal.
- Ela é boa?
- Gostosa, né?
- Então foi bom?
- Mais ou menos... A Marília é melhor.
E nos dava aquele tapa violento na cara, aquele tapa moral. Todos queriam Lucinha. Mas ele, ele não, desprezava a musa como quem mija num carro importado, só para sacanear o vizinho.
O que restava pra mim além de envolvê-la naquela aura de delírio ainda mais um pouco? Faria de mim mais jovem, mais honesto. Imaginei: Ela, num enterro, só com as canelas de fora chorando por um homem que não sou eu. Eu estivesse morto, fosse eu o cara a comer a Lucinha de oitenta e três no mínimo ela estaria usando luvas enquanto meu caixão descia desconjuntado pela cova adentro... Sempre achei que ela é do tipo de mulher que usaria luvas no enterro do amado. Ela não o amou. Certeza.
Acabada a cerimônia, andei devagar para a saída do cemitério sem a mínima vontade de cumprimentar quem quer que fosse. Encostei numa lápide musgosa e velha e lá pensei se não seria o Marcos o primeiro de uma dinastia de mortos que iriam me rodear e eventualmente me chamar. Seria mesmo bom estar mort...
- Tem isqueiro?
Ela balançava os óculos na mão esquerda e segurava o cigarro com a outra. Tirei o bic do bolso e acendi sem dificuldade comendo com os olhos a tragada mais funda que uma mulher poderia dar.
- Quer tomar um café?
Resolvi ser sem vergonha depois de velho, e no momento que ela olhou para o portão escancarado do cemitério um raio violento de vida passou pelos olhos daquela mulher. Ela murmurou um por que não acanhado e me deu o braço. E naquele momento, até que o mundo parecia mesmo feito para ser bom.
1 Comments:
E a vida roda
E quem é que não é
No fim um pouco calhorda
No fim um pouco mulher?
Mas é que a vida roda
De suspiro morreu a rosa
Porque não pôde voar.
Estrelinhas.
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