24.2.06

CACOS

Eu não sei aonde estão os meus amigos. Talvez por que eles acreditem que eu estou morto. Quem é vivo sempre aparece. Eu nunca mais apareci desde a festa de comemoração dos dez anos de formatura. Nesse dia eu estava com o nariz amassado e uma tala no braço esquerdo e ninguém veio se sentar do meu lado. Somente Ana tentou se comunicar comigo. Mas eu não dei mesmo muita bola. Ela sempre pareceu uma freira. Mas naquele dia, meu irmão, ela estava com um rabo espetacular. O tempo faz bem para certas mulheres. Uma pena que eu não tenha paciência para esse papo cristão. Se eu soubesse um pouquinho mais sobre Deus talvez tivesse mostrado pra ela como é que se faz para ir pro céu de verdade.
Não aparecer nunca mais tem suas vantagens. Aposto que me encontraram meia dúzia de qualidades, aposto que alguém até reza pela minha alma ou conta para os filhos alguma coisa estúpida que eu fiz e ri, ri com pena. Meu nariz não existe mais e acredito que tenha sido melhor assim. Um pedaço de orelha foi-se. Quando eu era criança imaginava meu velório e o tanto que chorariam, e que talvez até aparecesse o prefeito. Depois que eu soube: sempre quis morrer. Eu tento. Mas está difícil, não pensei que fosse ser tão devagar.
Nasci no Rio de Janeiro. Uma vez fui até a Bahia. Na cidade baixa quase me apeguei. Em Curitiba elas sentiam uma pena doída de mim. Davam de comer, um sobretudo velho, uma touca. E depois dormiam comigo pra compensar o frio da cidade. O Rio é muito quente, mas eu voltei e decidi que sempre seria noite. Dentro de um casco de navio é sempre escuro e já me acostumei com o bate estaca dos playboys que insistem que essa sujeira aqui é algo bonito. Bonito vir uma vez por semana. Venha no meu lixo, coma o meu lixo, cuspa, e você vai ver se é mesmo tão importante assim.
Quando eu comecei a jogar não sabia o que eram colhões. E depois morreu a velha, o pai. Isadora foi pra Itália. Ela que manda algum dinheiro pra mim. Ontem ganhei trezentos reais e paguei uma rodada pra toda pivetada que pede dinheiro no bar do Hotel Aeroporto. Todas as travecas, lindas, que me davam sorrisos, torceram o nariz. Os pivetes só sabem pedir cigarro e espantar os clientes. Mas elas gostam de mim mesmo assim. Desde o dia do Celso. O Celso era um gerente das docas, tão quieto, tão quieto que começou a passar as sextas feiras enfiando a faca nas meninas. Uma delas tava tão cortada que parecia uma peça de açougue. Eu não ia fazer nada, não sou de me meter com gente de porto, só faço minhas jogadas, mas ver Janete, um metro e noventa, correndo toda rasgada, chorando de dentro da recepção foi demais. É muita humilhação prum homem. Ela se escondeu atrás de mim e Celso quis me acertar. O resto são elas que contam. Desde esse dia a polícia não mexe comigo, eu não mexo com eles.
Quando eu fiquei doente depois da chuva no ano passado, Janete trazia café com conhaque. Até descolaram um médico que atendia no Hospital Central. Posso não conhecer ninguém nas coberturas da Avenida Atlântica. Mas sei quem conhece.
Eu não sei aonde estão os meus amigos. E é melhor que seja assim. Faltam uns pedaços para eu voltar a ser quem eu era. Mas acho que não vou mais encontra-los. Talvez por que eu já esteja morto. Nunca mais apareci. Talvez até em decomposição. Quem é vivo...